domingo, 2 de janeiro de 2011


Por Florêncio Vaz *

Em 2009, Celivaldo Carneiro e Manuel Dutra lançaram o caderno especial na Gazeta de Santarém sobre a Cabanagem, dando destaque ao acampamento de Cuipiranga e aos seus atuais moradores. Um ano antes, o antropólogo Leandro Mahalen de Lima, apresentou sua dissertação de mestrado (USP), “Rios Vermelhos”, sobre os cabanos, citando novamente os rebeldes de Cuipiranga.
Em 2010, o antropólogo escocês Mark Harris lançou seu livro “Rebellion on the Amazon” [Rebelião na Amazônia] baseado em documentos históricos sobre as Forças dos Brasileiros Reunidos, de Cuipiranga. No último dia 20 de dezembro, na UFPA em Belém, a professora Ana Renata de Lima Pantoja defendeu a tese de doutorado em Ciências Sociais/Antropologia “Terra de Revolta”, que cita novamente os cabanos de Cuipiranga como uma experiência significativa de resistência política no Baixo Amazonas.
Através destes exemplos (há outros), não há dúvida de que os cabanos acampados e armados quase em frente a Santarém há 175 anos estão bem vivos e despertando cada vez mais interesse, principalmente fora de Santarém. Qual a razão dessa atração que Cuipiranga exerce sobre os pesquisadores?
Há alguns aspectos que tornam o acampamento dos revoltosos de Cuipiranga muito interessante para os estudiosos. Ele já existia desde pelo menos 1832, antes da tomada de Belém (07.01.1835), o que mostra que a Cabanagem não começou na capital da Província e se espalhou para o interior, inclusive Santarém, como é muito divulgado nos livros de história.
A guerra iniciou em vários pontos do interior da Amazônia (não só em Cuipiranga) e culminou naquele janeiro de 1835 em Belém. Após a tomada da capital, os rebeldes de Cuipiranga intensificaram sua luta, chegando a forçar a Câmara de Santarém a aderir ao movimento cabano. O ponto continuou de pé, mesmo após a queda definitiva de Belém (13.05.1836), e até se tornou o centro do movimento rebelde e a fortaleza mais bem sucedida no interior da Amazônia.
Tanto que o último presidente cabano, Eduardo Angelim, pensou em se refugiar lá, para continuar a guerra. Um comandante das forças imperiais escreveu que o acampamento era o “berço de toda a anarquia” e o lugar onde os cabanos tinham “suas últimas esperanças de salvação”.


Outro líder anti-cabano escreveu que lá era “o lugar para onde todos os demônios iam.” Era imperioso mesmo destruir aquele foco de “últimas esperanças de salvação” para as classes infames da Amazônia nos anos 1830.
Uma razão para esse ódio voltado ao ponto cabano de Cuipiranga pode ter sido a sua posição estratégica: por um lado, fazia frente para o rio Tapajós/Arapiuns e, por outro, para o rio Amazonas, o que permitia que os cabanos controlassem o movimento de barcos e canoas nos dois rios. O acampamento ficava em frente a Santarém e, ao mesmo tempo, não muito distante de Óbidos, dois centros políticos muito importantes no Baixo Amazonas à época.
Conforme Mark Harris, Cuipiranga possuía um bem organizado sistema de comunicação, que usava cavalos, canoas e mensageiros. As estratégias e táticas de guerrilha eram fundamentais para os cabanos, já que suas armas (espadas, punhais, arco e flecha, pistolas e rifles) estavam em flagrante desvantagem diante das forças imperialistas.
O quartel de Cuipiranga tinha um forte construído de madeira, rodeado de trincheiras e estacas, que garantiam a sua segurança. Perto dali estavam as roças, que forneciam a farinha de mandioca, e os campos, onde havia a criação de gado e cavalos, para fornecer alimentação aos rebeldes e suas famílias (no seu auge, o acampamento tinha mais de mil homens armados).
Tudo isso exigia fortes e competentes líderes. Um dos mais expressivos era Miguel Apolinário, que se auto-batizou Maparajuba Firmeza, a exemplo do jovem cearence Eduardo Nogueira, que acrescentou Angelim ao seu nome. Eles escolhiam nomes de árvores, para dar a idéia de dignidade, de manter-se de pé e ser justo.
Apolinário Maparajuba era um soldado que fugiu de Santarém. Era marcado pela vivacidade e coragem, além de alto preparo intelectual. Costumava usar trechos da Bíblia em suas mensagens aos cabanos. Ele impôs disciplina, obediência e unidade entre os revoltosos. Apesar da sua preocupação com a “vigilância” diante do inimigo, foi assassinado em Manaus em meados de 1836. A juventude santarena precisa aprender muito com este homem.
Se Cuipiranga chegou a contar com mil homens armados, muitos deles com seus familiares, pode-se imaginar que, ao todo, contava pelo menos com três mil habitantes. Mark Harris escreve que eles eram moradores da região – indígenas, mestiços, brancos e negros livres – que fugiam da violência dos senhores portugueses e dos desmandos das forças imperiais, em busca de segurança.
Mesmo com a guerra, o clima no acampamento era de festa, com música e dança, e debates acalorados. Os acampados ali experimentavam uma forma de organização mais participativa e igualitária do que aquela que conheciam nas fazendas dos brancos ou nas cidades onde a lei era usada de forma despótica e os castigos arbitrários recaiam sempre sobre os indígenas e os negros, os mais pobres. Por isso, eles fugiam para Cuipiranga, a terra livre.
Longe da imagem de foras-da-lei divulgada sobre os cabanos pelas forças imperiais, os rebeldes de Cuipiranga defendiam o Direito e a ordem imperial. Na Proclamação mandada poucos dias após a Câmara de Santarém se render ao governo cabano de Eduardo Angelim (09.03.1836), e quando a cidade já estava sob o comando do cabano Bonifácio Nunes de Arruda, é evidente esse respeito à Lei: “Honrados cidadãos Tapajoenses: Sucegai vossos Espíritos. A Reunião de Cuipiranga não vos hade offender, antes pelo contrário hade fazer garantir os vossos Direitos que quase se hião devorando, pelo Déspota Juiz de Direito desta Comarca Joaquim Roiz de Souza [...]”.
As pesquisas mostram que os cabanos é que eram os legalistas (termo equivocadamente usado para as forças imperiais repressoras), os defensores da ordem e da Justiça, e que foram à guerra contra o despotismo das classes dominantes. Essa verdade é incômoda.
A destruição do sonho daqueles revoltosos de Cuipiranga só foi possível com a força de cinco navios e mil homens pelo rio Arapiuns e mais três navios pelo rio Amazonas. Depois de outros ataques fracassados, em 12 de julho de 1837 Cuipiranga caiu, quando seu comandante Diniz já havia morrido com um tiro no peito em 23 de junho. Ainda conforme Mark Harris, não mais do que 500 pessoas se renderam. Cada prisioneiro recebeu 100 chicotadas nos dias seguintes. Os líderes foram presos e enviados em navios para Belém, de onde poucos voltaram.
Não eram aproximadamente três mil habitantes? Uma parte conseguiu fugir pela mata, mas grande parte foi morta, justificando o nome do lugar, terra [cui] vermelha [piranga], devido a quantidade de sangue ali derramado. Um dos principais líderes da expedição que destruiu Cuipiranga foi o padre Antônio Manoel Sanches de Brito, então Juiz de Paz de Óbidos. Só uma secular combinação de interesses dominantes explica como os filhos desta terra mantém esquecida esta história, a sua história.
Continuemos com a lista de obras sobre os cabanos do Tapajós. Será lançado no próximo dia 7 de janeiro o documentário “Cuipiranga”, de Cristiano Burlán, um dos resultados da Caravana da Memória Cabana, que percorreu dez comunidades no final de maio passado, entrevistou 80 moradores e gerou 50 horas de material gravado.
A Caravana Cabana foi uma iniciativa minha e da antropóloga e escritora paulista Deborah Goldemberg, que juntou uma dezena de outros paulistas, que pagaram suas despesas para vir a Santarém documentar as histórias da Cabanagem. Todos ficaram fascinados com a memória viva dos moradores da região sobre um evento que ocorreu há 175 anos (como outros estudiosos de fora também ficaram).
Cristiano Burlán gostou tanto do que ouviu que realizou o filme sem nenhum patrocínio. Ou seja, pagou para realizar Cuipiranga, o filme, que logo poderá ser visto nas escolas, igrejas e comunidades, como raro material didático sobre o tema.
Muita gente está descobrindo Cuipiranga e a Cabanagem, e gosta do que vê e escuta. Com honrosas exceções de pesquisadores locais, os estudiosos de Cuipiranga são geralmente gaúchos, paulistas, belemenses, escoceses… Já não está na hora de mais santarenos prestarem atenção nessa história? Até porque os idosos, guardiães dessa memória, estão desaparecendo.
Recuperar a história dos cabanos é questão de justiça, para com eles e para com a nossa geração, que precisa reaprender o orgulho de defender seus rios e florestas, sua cultura e sua dignidade, ainda hoje ameaçados e pisoteados. Continuar com esse silêncio é conivência com a política do esquecimento, tão conveniente aos governantes de ontem e de hoje.
Quando reinava neste chão o trabalho forçado, a escravidão e o abuso do poder político, indígenas, negros e brancos, milhares de homens e mulheres, se levantaram para mudar as suas circunstâncias, ao invés de passivamente aceitá-las. Procuraram construir uma nova sociedade, com justiça e igualdade (M. Harris).
Um fato semelhante, ocorrido na Europa meio século antes, foi chamado de Revolução Francesa e dela se diz que mudou a história da Europa e do Ocidente. Pois, diante deste fato, a Revolução dos Cabanos não é em nada algo menor, a não ser por continuar esquecida. A boa notícia é que isso começou a mudar.
A reunião de Cuipiranga (07-09/01/2011), que celebrará os 175 anos da Cabanagem, é mais um dos sinais de que os ideais daqueles rebeldes ainda estão vivos. 
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* Florêncio Vaz é santareno, doutor em Antropologia e professor da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), frade franciscano e ativista indígena. Email: florenciovaz@uol.com.br
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Este artigo foi publicado originalmente no Blog do Jeso em 01/01/2011.

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