domingo, 13 de outubro de 2013

A morte e vida Severina de tantas Marias no nordeste de Minas Gerias. No Jequitinhonha, não somente o chão rachado, o gado magro e ossudo, a voz introspectiva das mulheres, dizendo mais pra dentro do que pra fora, é a solidão companheira de berço dessa gente. Esquecidas entre morro e morro, viúvas de maridos vivos, mantém sempre a esperança em que um dia tudo vai “miorar”. E não há como negar que a Esperança sempre foi o primeiro impulso para as grandes transformações.

Sakamoto, nesta matéria mostra como um jornalismo comprometido é possível. Publicada em junho de 1999, traz um debate fundamental para entender o Brasil de hoje.

Boa Leitura!


As viúvas do sertão

Por Leonardo Sakamoto*


Visita, em maio de 1998, às cidades que convivem com o drama das “viúvas de marido vivo”. O jequitinhonha expulsa homens, deixando mulheres sozinhas contra a realidade do nordeste de Minas.

Rosto sulcado pelo tempo, como os leitos dos rios fantasmas que assombram a região. Pele e corpo ressecados, feito a terra, outrora fértil que hoje se desfaz em areia levada pelo vento. Olhar profundo e vazio, o mesmo vazio a que está acostumado o prato do sertanejo. A baixa estatura quase não deixa sombra. Também, pudera! O sol a pino fica a caçoar de sua cabeça e, se não ofusca diretamente, cintila em todo o chão até onde a vista alcança. Resta proteger a moleira, então em um passe de mágica balde d’água vira cartola. E assim como surgiu, lenta e pacientemente, desaparece por entre galhos retorcidos, vacas magras e ossudas, morros brancos e poeira da estrada.

Aos 72 anos, Maria José é uma mulher de sorte. Afinal de contas, apesar de caminhar mais de 10 quilômetros em busca de água, sabe que não é sozinha. Maria José possui um companheiro que estará lá quando ela voltar, brigando com a terra na luta pelo sustento.

Infelizmente, ela é a exceção, não a regra. O chão, há vários meses, não vê chuva que dê para o cultivo. A seca que atinge todo o Nordeste expulsou maridos, pais e filhos do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais. Para sobreviver foram obrigados a migrar, principalmente para o interior do Estado de São Paulo, servindo como mão-de-obra barata às usinas no corte da cana-de-açúcar.

Como os homens passam a maior parte do tempo trabalhando fora, as “viúvas de marido vivo” – como são chamadas a contragosto suas esposas – acabam se tornando a duras penas chefes de família.

Esse fenômeno ocorre com mais freqüência na região do médio Jequitinhonha – compreendendo cidades como Araçuaí, Itinga, Coronel Murta, Chapada do Norte e Virgem da Lapa, além de uma série de povoados e vilarejos sertão adentro. Cidades como Itinga apresentam, de acordo com o censo 1996 do IBGE, 70% de sua população dispersa pela área rural. São empregados de grandes fazendas ou pequenos proprietários de terra em seus sítios de alguns alqueires. Quando chove, é possível arrumar um emprego na lavoura ou plantar a sua própria roça. Isso, quando acontece, é próximo ao mês de dezembro. Contudo, com a estiagem, a terra não consegue segurar o trabalhador no campo. E a busca na cidade é quase inútil. Não há vagas, nem no pequeno comércio local, nem na prefeitura – que muitas vezes já dedica mais verba do que é permitido por lei à folha de pagamentos dos funcionários.

A solução aparece na forma dos ônibus mandados pela indústria canavieira paulista ou matogrossense. Em cidades como Sertãozinho, Bauru e Ribeirão Preto estão espalhadas as gentes do Jequitinhonha. E o processo de vai-e-vém não é recente, como a seca também não é. Tanto que, não raro, as pessoas rompem a corda desse iô-iô humano e acabam ficando no sul.
                                           Bordado produzido pelas mulheres de Itinga


“Tenho três filhos em São Paulo. Um foi há pouco tempo. E esse sei que volta. Agora, dois deles já estão morando lá com família e tudo”, conta Joaquim, que ganha a vida apanhando lenha e vendendo às padarias e fornos de barro. Com nove filhos no currículo e muito trabalho nas roças, ele e Geralda, sua mulher, moram em uma casa do Mutirão. Construído com a ajuda da prefeitura, em parceria com as associações religiosas e de moradores, esse conjunto de 20 casas coloridas à beira da BR-367 tem uma história peculiar. De acordo com Helena, da Associação das Mulheres do Bairro Porto Alegre (AMBAPA), em Itinga, o Mutirão foi erguido para abrigar as viúvas que ficavam sozinhas no campo enquanto seus maridos migravam. Hoje, boa parte dos homens está de volta – mas por pouco tempo.

Emanuel está de passagem. Espera o pouco dinheiro que conseguiu juntar acabar para poder retomar o seu rumo em direção sul. Reclama que, apesar da carteira assinada, não consegue obter o salário desemprego. “As usinas não dão os papéis de que eu preciso. E o governo disse que sem os papéis nada feito.” Os papéis a que ele se refere é a rescisão do contrato de trabalho. Muitas empresas não emitem toda a documentação, burlando assim o fisco e pagando menos impostos. O que, é óbvio, afunda ainda mais o cortador de cana na lama, ou melhor, na areia seca do sertão.

Durante o tempo em que estão fora, os homens mandam o pouco que recebem para a família. Três, cinco, sete têm que se virar às vezes com 80, 120 por mês. Francisca, mãe de dois filhos e com um terceiro no ventre, é uma privilegiada. Não tem que dar de comer a muitos com seus R$ 80,00.
                                       Pedro Maroto retira água de cacimbas para viver


Mesma sorte não tem Pedro Maroto. Alto, voz de barítono, como um chefe de clã fala com orgulho de sua propriedade – um pequeno sítio próximo ao vilarejo de Teixeirinha. Apesar de não ser uma viúva, pena como tal. A sua aposentadoria e de sua mulher (uns R$ 250,00 no total) é responsável pela sobrevivência de 12 pessoas. Produção quase não há. O córrego que cortava sua terra secou há tempos. O jeito foi improvisar, através da solução mais comum na região: sangrar o leito seco até alcançar água. Contudo, até as cacimbas estão secando. “A gente vai cavando, cavando e cavando, cada vez mais fundo para achar água. Se fizesse um poço, teria água aqui. Mas com que dinheiro?” Se é que se pode chamar de água o caldo amarelo retirado dos buracos no chão. “E eu ainda tenho sorte. Moro em um vale de um rio, dá para cavar cacimbas. Tá vendo o sítio no alto daquela montanha? E eles, como é que ficam? Têm que descer até aqui e pegar água comigo. Caminhar muito.” Se não bastasse, Pedro Maroto ainda divide o parco caldo com os animais da propriedade.



Apesar da aridez da paisagem é fácil identificar onde estão os leitos secos. É só seguir a estreita linha verde que vai fazendo seu caminhar sinuoso pelos vales. As cidades, por enquanto, não sofrem de falta de água. Em Itinga, o perene córrego Água Fria – que, diga-se de passagem, não é grande coisa – abastece a zona urbana. A pobreza, que se faz presente no campo, também encontra aqui lugar para crescer e se multiplicar. Se a seca bate forte em todo o Jequitinhonha, o desemprego é o problema que mais preocupa os moradores.

Os efeitos da estabilização econômica do Governo Federal têm gerado uma desestabilidade emocional nos habitantes. Para fugir da realidade da miséria, vários se entregam à bebida. São muitos os casos de alcoolismo e, portanto, não raro as mortes por cirrose hepática. E em se tratando de doenças, o Vale está bem servido. As constantes pressões a que são submetidos os trabalhadores do corte da cana, aliadas às condições insalubres e às longas jornadas, têm provocado o aparecimento de uma doença até então reservada às metrópoles. A hipertensão atacou os maridos de Maria, Rosa, Geralda, Joana e os de um sem número de mulheres, que agora se entopem de medicamentos.
                                 Forno de tijolos e de carvão são comuns em todo o Vale


O Vale do Jequitinhonha é uma das regiões mais ricas em minérios em todo o Brasil. Berilo, cassiterita, feldspato, lítio, água-marinha, nióbio, turmalina, ouro, diamante. Cidades com nomes de pedras é que não faltam em todo o Vale: Topázio, Turmalina, Berilo, Carbonita, Pedra Azul, Diamantina. E como não poderia deixar de ser, empresas mineradoras também não, como a Arqueana e a Sandspar. A mineração é outro grande empregador da região, mas também uma grande fonte de problemas. De acordo com Joaquim, médico em Itinga, a incidência da silicose em Taquaral é de 15%. A doença, causada pelo pó do interior das minas, literalmente destrói os pulmões. Este é o caso de Roberto – que teve que vir a São Paulo para se tratar de uma insuficiência respiratória que ganhou como recompensa por trabalhar nas minas. Isso sem contar a contaminação do rio por mercúrio – usado para separar o joio do trigo na mineração.



E não para por aí. De acordo com Josimar, professor em Itinga, a mineração tem sido responsável pelo assoreamento do rio Jequitinhonha. Dragas lavram a terra em busca de minérios, atirando o cascalho no seu leito. Com isso, ele vai se tornando cada vez mais raso e largo – processo semelhante ao que ocorre nos rios Pinheiros e Tietê na cidade de São Paulo que, periodicamente, têm que passar por uma limpeza de suas calhas para que não transbordem. Segundo Josimar, previsões apontam para uma morte do Jequitinhonha em 20 anos se o despejo continuar.

Porém a pior doença não é causada pelo ar, água ou trabalho e sim pela distância. As mulheres vêem seus maridos irem embora e, apesar da tristeza, enchem-se de esperança. A esperança de que eles voltem bem e rápido para os seus braços. Dedicam-se então a criação da prole – grande na maioria das vezes, impossível de ser contada em mão só. Cartas são quase sempre o único meio de comunicação entre o casal por anos a fio.
                                   Casa no bairro do Mutirão, erguido para ajudar as viúvas


E o peito começa a apertar quando o número de páginas vai se escasseando, a freqüência diminuindo, quando a saudade escrita já não convence. O coração fica mirradinho, mirradinho. Não são poucos os homens que, longe de casa, arrumam uma outra mulher. O marido de Ritinha foi trabalhar em São Paulo. No princípio ela foi junto, acompanhá-lo. Antes unidos nas dificuldade, do que separados. Pouco depois, ele a mandou de volta. Com o passar do tempo descobriu-se que tinha outra. Ficou arrasada. Inconstante, o homem mandou essa outra embora também. Justiça ou coincidência, adoeceu em seguida. Agora, está pedindo para voltar. A princípio Ritinha não queria. Mas, agora, repensa a possibilidade. “É difícil criar os filhos sozinha”, completa sua irmã.

E as novidades não ficam apenas em uma nova cama. Às vezes se estendem também para uma nova casa, novos filhos. Enfim, uma nova vida. Eliane passou por poucas e boas para ficar com o homem que amava. Com a família de seu marido a detestando, casaram-se. Como via de regra, ele foi obrigado a trabalhar no corte da cana no Mato Grosso. Veio a primeira filha e ele estava longe. No começo, ficava um tempão fora, mas voltava. Um dia foi e não voltou. Passaram-se meses, anos. No começo as cartas chegavam. Depois foram desaparecendo. O dinheiro idem. Eliane passava dificuldades, mas agüentava na esperança de rever o marido.

De repente reapareceu. Fez um filho e sumiu de novo. Ela, cansada arranjou um companheiro. Pouco depois começou a freqüentar a igreja evangélica. E então fizeram-na escolher: ou seu companheiro ou Deus, pois ela, uma mulher casada nos laços sagrados do matrimônio, não poderia viver em pecado com seu esposo ainda vivo. Ficou sozinha com Deus. O marido reapareceu mais uma vez e disse que desta vez seria para sempre. Eliane não quis – afinal de contas não era nenhuma palhaça -, mas devido a insistência da filha, voltou.

Um tempo depois ele confessou que formou família em São Paulo, com outra filha e tudo. Ela enraiveceu, mas como, segundo ele, tudo tinha acabado, perdoou. As coisas apertaram e ele voltou às usinas de cana. Então Ritinha soube da notícia que o marido havia morrido de ataque cardíaco. Hoje, trabalhando como empregada, não sabe mais o que fazer para sustentar os quatro filhos, além das constantes crises de depressão da mais velha. Pensão, nem pensar. Provavelmente a outra família de seu marido é que a está recebendo do governo. Eliane tentou entrar na Justiça, mas não conseguiu. Faltam documentos que estavam com ele e “magicamente” desapareceram.
                                                       Mercado municipal em Itinga


A seca destrói a vida de todos. Contudo a natureza não pode ser a única a sentar no banco dos réus. Os governos têm uma grande parcela de culpa nessa história. Ao contrário de outras regiões do país em que se espera grandes projetos de transposição de águas para viabilizar a agricultura, no Vale seria necessário menos do que se imagina. O rio Jequitinhonha tem água em abundância, o local possui uma das melhores terras para o plantio de frutas no Brasil. A solução estaria em um programa decente de irrigação. Tanto é que nas pequenas áreas que possuem água para o plantio, florescem mangas, canas, melancias, uvas, amendoins, verduras, legumes. Verdadeiros oásis no meio do sertão.



É paradoxal: como famílias inteiras passam fome, como esse Vale pode ser pobre se sua terra é tão fértil? Ou mais, se uma artéria a céu aberto rasga a região? É absurdo pensar que Maria José tenha que andar tanto em busca de água se não muito longe de sua casa o Jequi corre em direção ao mar. Projetos até existem, mas faltam dinheiro e boa vontade política.

E a ajuda nunca vem. Por que, afinal de contas, olhar para o Vale do Jequitinhonha? Apesar da grande extensão territorial os votos não são tantos assim. É mais negócio concentrar esforços para agradar eleitores do Triângulo Mineiro, região da Grande Belo Horizonte ou Sul de Minas. A relação custo-benefício é mais vantajosa.

E maridos, pais e filhos continuarão sendo retirados à força de suas terras para trabalhos insalubres. Esposas, filhas e irmãs continuarão a amargar a solidão da seca. Ao invés de fazer com que o trabalhador permaneça nas suas origens, gerando emprego, fazemos com que ele acabe vindo às grandes cidades do Sul e ser mais um nos bolsões de pobreza que salpicam as capitais.

O futuro é incerto. Marias, Geraldas, Ritinhas, Elianes, Helenas, Rosas, Emílias, Joanas são várias e na verdade são uma ao mesmo tempo. Não precisam de sobrenome. Você as encontra ao longo de todo o Vale. As histórias são as mesmas, o sofrimento igual, as incertezas idem. Certo mesmo é o rio, que continuará a correr embalando a fome e a seca em suas águas num ciclo interminável na direção do mar.
                                                   Emília diante de horta comunitária


Mulheres do mundo, uni-vos!

Baixinha, tranqüila, de fala calma e sossegada. Assim é Emília, coordenadora da Associação das Mulheres de Itinga (AMAI) que por onde passa é saudada. Na verdade, abordada. Emília ajuda a promover a distribuição das cestas básicas que chegam à cidade por intermédio do governo e de doações destinadas à seca. “As cestas não vem em número suficiente e é impossível servir a todos. Uma vez temos que ir à zona rural, outra, distribuir à cidade. Sabemos que passam fome mas não dá para fazer muito”. Enquanto fala em frente aos mantimentos, desaparece em meio à multidão que a cerca. “Esse trabalho assistencialista não é o ideal. O certo seria um jeito de dar emprego a essa gente”.

Se ainda não encontrou a saída para os seus problemas, Itinga já deu um grande passo na mobilização de suas mulheres. As duas associações possuem padarias, oficinas de costura, aulas de alfabetização e supletivo, fabriquetas de absorventes e fraldas descartáveis. Além das hortas comunitárias, divididas igualmente entre as famílias, com irrigação artificial. “Por enquanto tudo isso é insuficiente para garantir o sustento, mas todos estão vendo que é possível melhorar a situação”, completa Emília.

Itinga era conhecida como a cidade das viúvas, tamanho o número de incidências desse tipo. A prefeitura e a Igreja Católica têm realizado mudanças nas áreas de moradia popular, saneamento básico, saúde e cultura. A participação política dessa cidade mudou radicalmente. Com o segundo mandato consecutivo em vigor, o PT abriu um espaço maior para a discussão dos problemas. Para se ter uma idéia, os orçamentos da prefeitura e da câmara dos vereadores são pintados todos os anos nas fachadas desses prédios.

A eleição de um partido de esquerda tirou do poder as “famílias” que até então mandavam na política da cidade: os Murta, os Gusmão, os Evangelista, entre outros. Atualmente, a cidade vizinha, Araçuaí, também possui um governo do PT.
                                     O Jequitinhonha é famoso pelo artesanato em barro


Ao longo do rio, a arte brota da seca


Ao longo da BR-367, no povoado de Pasmado, estendem-se fileiras de vasos, jarros, cumbucas, panelas e outras peças de barro feitos pelas mulheres da região. As “poteiras”, como são chamadas, moldam com as próprias mãos sem a ajuda de tornos. Os homens, dedicam-se à fabricação de artefatos de madeira. Infelizmente até nisso o povo da região é sacrificado: são obrigados a comprar o barro de uma propriedade particular.

O artesanato em barro e madeira, característico da região, já alcançou renome internacional através de das mãos do artesão Ulisses, em Itinga. De acordo com Sebastião Rocha, pesquisador de cultura popular do Vale, o “artesanato local retrata, de um lado, a identidade cultural de sua diversificada população, dividida entre o sonho e a luta, o anseio de dias melhores e o fatalismo histórico da pobreza, da esperança e a submissão, a espera da vinda do Messias e busca armada pelos direitos humanos”.

Vale do Jequitinhonha, Junho de 1999


Fonte: http://reporterbrasil.org.br/1999/06/as-viuvas-do-sertao/
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*Leonardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política. Cobriu conflitos armados e o desrespeito aos direitos humanos em Timor Leste, Angola e no Paquistão. Professor de Jornalismo na PUC-SP, é coordenador da ONG Repórter Brasil e seu representante na Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo.

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